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contente

“Eu não me importo com seu tratamento de silêncio.”

O balançar da carruagem era suave e as cortinas estavam fechadas para impedir que o frio os atingisse, assim como tapetes forrados foram colocados sob seus pés para manter a jovem e mimada Segunda Senhorita Ye aquecida. Suas mãos estavam enfiadas nos aquecedores de mãos felpudos, impedindo que seus delicados dedinhos congelassem pela queda cada vez mais brusca de temperatura. Li Susu abriu um dos olhos e olhou para o perfil de seu pequeno demônio.

Tantai Jin estava sentado sobre a almofada, com ambos os joelhos dobrados e vestido com certo requinte. Suas roupas novas lhe caíam muito bem, deixando Li Susu muito satisfeita com as aquisições que havia feito e naquele momento ele usava um conjunto completamente azul, cujos bordados dourados de fios de ouro eram encantadores e reluziam sob as luzes, assim como combinava com a coroa azul que prendia as mechas castanhas de cabelo liso, coroa essa incrustrada por topázios brilhantes e leitosos. A cor não destacava a pele branca do demoniozinho como os tons escuros, mas mesmo assim ficava realmente bonito nele.

“Que bom.” ela assentiu, voltando a fechar os olhos.

Seu virar de cabeça balançou seus brincos de ouro longos e as pedrinhas finas de safira bateu suavemente em sua pele. Li Susu adorava as roupas daquele mundo fictício, a Ye Xiwu tinha realmente um excelente gosto para roupas! Usava hoje um vestido longo com laços azuis claros na cintura, valorizando seu busto e o brocado em seu peito era lindíssimo, com bordados de pássaros coloridos e detalhes dourados. O colar em seu pescoço era brilhante, cheio de pérolas e safiras, seu longo cabelo sedoso e brilhante estava preso em um coque alto onde diversos grampos carregavam correntinhas finas delicadas e pedras preciosas. Li Susu não teve muito o que fazer nas últimas semanas exceto dançar e fugir de Tantai Jin, dividida entre seu profundo querer de cuidar bem dele e afagar aquele rostinho bonito e o que Ye Xiwu faria, que era desprezá-lo pela suposta tentativa de traição.

Desse modo, ela começou a passar seu tempo parecendo um pavão, colocando joias e véus em seu cabelo, experimentando maquiagens, se admirando no espelho e trocando de roupas apenas pelo prazer de rodá-las por aí como um pavão abria suas penas coloridas para se exibir. Ela se divertiu, eram coisas que ela nunca fez em sua antiga vida. Porém, naquela noite especificamente ela havia arrasado!!! Sua escolha de joias, cabelo e maquiagem deixaram ela e sua adorável serva Chun Tao maravilhadas e até o manto quente branco com pelúcia de raposa era bonito e realçou a escolha das cores das vestimentas internas.

Li Susu estava uma gracinha, não entendia porque Tantai Jin parecia tão irritado e até a olhou com uma pontada de desprezo.

Ela não estava muito feliz também, tinha que admitir. A afeição do personagem não mudou de um capítulo para outro, o que era uma coisa… positiva?? Ela esperava que sim, mas não havia confiança quase alguma nela. Li Susu tinha que admitir que ficou muito indignada a princípio, porque na visão dela, ela estava sendo uma esposa muito boa para os parâmetros de Ye Xiwu! O que ela precisava fazer para aquele pequeno ser demoníaco confiasse nela? Li Susu fazia beicinho sempre que pensava nisso.

Porém… ela estava levando a situação para um lado muito sentimental ultimamente. Li Susu precisava se lembrar constantemente que Tantai Jin era um personagem complicado, que teve um passado terrível e não tinha motivos para acreditar ou confiar na esposa, mesmo que fosse tratado bem ou pelo menos visto com um pouco de humanidade. Talvez para ele Ye Xiwu tivesse planos perversos e só o tratasse bem para usá-lo, no fim de tudo.

Claro, Li Susu sabia que Ye Xiwu era uma personagem que tinha uma boca cortante como faca, mas coração de tofu[1], e Tantai Jin também já havia notado isso e deixava claro que até mesmo se divertida com aquela característica da esposa, mas isso não significava que ele não pudesse ter desconfianças sobre os planos reais dela. Mesmo que ela falasse constantemente que se encontrasse uma cura para seu antídoto ela o eliminaria — cura essa que não existe! —, Tantai Jin não tinha como ter certeza que a mocinha estava blefando. Ele não apenas não tinha porque confiar nela, ele não podia confiar nela. 10% até era bastante coisa para os parâmetros dele, Li Susu devia ficar feliz!

Mas ela era muito emocional quando se tratava dele. Esse é o problema de garotas que se apaixonam rápido!! Li Susu era boba.

“Sendo assim, Xiao Lin não irá olhar mais para você apenas porque você se arrumou mais essa noite.”

Os pensamentos dela foram interrompidos. Franzindo a testa, ela olhou para o pequeno demônio com confusão ficando evidente em seu rosto, se perguntando se havia entendido corretamente ou estava apenas muito confusa a ponto de imaginar aquela frase.

Tantai Jin não estava olhando para ela. Ele continuou olhando para frente, seus olhos de fênix fixos no chão da carruagem com indiferença óbvia. “O quê…?” ela perguntou, depois de notar que ele permaneceria em completo silêncio depois de fazê-la abrir os olhos e encará-lo. “O que uma coisa tem a ver com a outra?”

“Se quiser me punir, terá que encontrar outra coisa.” Tantai Jin sentenciou, “Não me importo com seu silêncio.”

Li Susu sentiu sua testa doendo de tão franzida que estava. “Certo, mas o que Xiao Lin tem a ver com isso?”

“Quem falou em Xiao Lin?” ele a questionou, movendo a cabeça e olhando para ela.

Ok, Li Susu estava definitivamente começando a enlouquecer. Ela realmente imaginou aquela frase anterior?

Levou alguns segundos para uma ponta dos lábios de Tantai Jin se erguer com cinismo, de maneira muito sutil e quase imperceptível. Aquele demônio!!!!

“Seu demônio! Você está tentando me fazer acreditar que estou louca?”

Tantai Jin suspirou e passou os dedos pelo tecido das próprias vestes, alisando-as. “Eu nunca ousaria, minha nobre dama.” ele murmurou, “Talvez você esteja pensando tanto no Príncipe Lin ultimamente que começou a escutar vozes.”

Tão cínico! Li Susu respirou fundo e fechou os olhos, meditando enquanto contava até dez. Não é como se ela fosse punir Tantai Jin ou chutá-lo para fora daquela carruagem — apesar de ser uma coisa que Ye Xiwu realmente faria, mas custou muito para Li Susu convencer o sistema que puxar o pequeno demônio para dentro da carruagem não era ooc.

Era fato que Ye Xiwu nunca permitiu que o marido pisasse na carruagem exclusiva dela, ciumenta e mesquinha como era com suas posses, apenas ela podia usar aquilo que pertencia a ela, contudo, naquela noite ocorreria um banquete novo no palácio e a família Ye estaria toda presente, também era uma forma do imperador ficar de olho em seu maior general e no genro intragável — o Príncipe Refém, que o imperador detestou perder bem embaixo do próprio nariz por causa de uma aparente maquinação irresponsável da Segunda Senhorita —, então é claro que mesmo que Ye Xiwu tenha proibido o marido de pôr os pés para fora da mansão, ela precisaria levá-lo ao palácio como um cãozinho em uma coleira.

Só que o inverno já havia chegado dessa vez, as primeiras manhãs cobertas por neve surgiram na semana passada e agora a grama havia sido coberta por uma camada fina de gelo branco que os servos também se ocupavam de limpar todos os dias, tirando o acumulo na frente das portas para que ninguém corresse o risco de cair. E o frio piorava muito durante a noite, se Li Susu fizesse como Ye Xiwu fez na novel postada na plataforma e obrigasse Tantai Jin a caminhar a pé atrás da carruagem, ele certamente ficaria resfriado! Seria muito incômodo para ela ter um marido resfriado!

Então ela o empurrou para dentro da carruagem quente e bem protegida. Certamente ela não o empurraria para fora justamente agora… mesmo que ele estivesse a provocando muito!

“Eu sequer penso em Xiao Lin” ela resmungou, dando pequenos e curtos chutes na coxa de Tantai Jin. Ele parecia muito obediente sentado daquela forma, mas olhava para ela com certa frieza. “O que deu em você, demoniozinho?”

“A senhorita costumava se vestir muito bem especialmente para festas e banquetes no palácio imperial antes de casar, apenas para poder impressionar o príncipe herdeiro.” Tantai Jin declarou, “Antigos hábitos não mudam, não é?”

“Você parece uma concubina com ciúmes.” Li Susu resmungou, mas sentiu certo divertimento. “E desde quando me observava antes de nosso casamento?”

“Eu escutava boatos” ele comentou de forma fria, “Quem não sabia o quanto a Segunda Senhorita Ye queria fazer o Príncipe Camélia se apaixonar?”

Li Susu abriu a boca para argumentar, mas… É, ele tinha razão. Então tudo que ela pôde fazer era fechar a boca e assentir sentindo profundo sentimento de vergonha dentro de seu peito, mesmo sabendo que quem fazia aquelas besteiras de se vestir de maneira brilhante, cheia de pesadas joias cintilantes, usando roupas de verão durante o inverno apenas para correr atrás do príncipe e tentar ser notada por ele era a personagem antes de sua transmigração, Li Susu às vezes sentia que tudo aquilo havia sido feita por ela mesma e tomava a vergonha para si.

Como um adulto sente quando alguém relembra algum momento vergonhoso de sua adolescência.

Respirando fundo com alguma dificuldade, ela lambeu os lábios e viu um brilho de escárnio nos olhos de Tantai Jin, sabendo que ele havia vencido aquela discussão.

“Mas eu lhe disse que tudo que me interessa nele é um posto” Li Susu resmungou, revirando os olhos. “O que quer relembrando isso agora?”

“Só estou relembrando isso para a senhorita, como um favor” Tantai Jin fingiu cortesia, mesmo que seu tom fosse inegavelmente irônico. “A senhorita está casada agora, não apenas nominalmente, mesmo se Xiao Lin se tornasse o imperador hoje ele ainda não iria tirá-la desse casamento para desposá-la, não importa o quão bonita esteja.”

Li Susu sorriu, “Estou bonita, Tantai Jin?”

Tantai Jin não respondeu, lançando um olhar endurecido e frio antes de virar o rosto para a parede de novo. Li Susu riu e esticou a mão, puxando a orelha dele de repente, fazendo-o se inclinar um pouco ao ser pego de surpresa e olhá-la com indignação. “Ye Xiwu!” o príncipe refém se desfez do toque dela. “Não sei o que é bonito ou feio, mas sei que a senhorita está socialmente aceitável.”

Ela riu mais e balançou a cabeça. “Você” ela o cutucou com a ponta do dedo, “realmente parece” ela o cutucou de novo no mesmo lugar, “uma concubina ciumenta!” Li Susu ergueu o indicador e o cutucou no centro da testa.

Tantai Jin respirou fundo. “Que bom que a senhorita se diverte.”

“Eu me divirto tanto quanto você se diverte me lembrando que não somos mais um casal nominal” Li Susu o provocou, cruzando os braços. “Você realmente leva isso como um prêmio, não é?”

Tantai Jin olhou para ela com uma expressão cheia de sarcasmo e se inclinou em direção a ela. “Foi você quem me deu esse direito por livre e espontânea vontade, não precisei lutar por ele.”

Li Susu olhou para o brilho maldoso nos olhos dele e pela primeira vez quis dar um tapa em Tantai Jin. Ele estava chamando ela de fácil? Ela não conseguia esconder a irritação que sentia dentro dela vindo em ondas quentes e ardidas em seu estômago, sabia que sua expressão estava se contorcendo o que pareceu diverti-lo, elevando o brilho nos olhos dele e o sorriso nos lábios vermelhos. “Eu só faço isso por causa do veneno.” ela respondeu com frieza e uma voz obscura.

Tantai Jin desceu o olhar para o pescoço e busto dela lentamente, como se a analisasse e Li Susu fechou as mãos dentro do aquecedor, porque apesar de muito irritada com ele aquele olhar aquecido e mal intencionado causou arrepios nela e um bater mais acelerado de seu coração. Com um sorriso, que não era sarcástico ou cínico, mas bastante contido, Tantai Jin se inclinou para mais perto dela a ponto de sua respiração poder ser sentida muito perto da boca dela. “Tem certeza?”

Li Susu se distanciou, tossindo falsamente. Tantai Jin fechou os olhos por um segundo e respirou fundo, voltando para sua posição inicial.

Com o coração ainda acelerado e calor em seu pescoço e rosto, ela desceu da carruagem rapidamente. Tantai Jin não tinha autorização para se distanciar da família Ye — e era até melhor assim, visto que os príncipes que sempre implicaram com ele continuavam por aí, agindo de maneira incontrolável e podiam tentar relembrar os velhos tempos quando batiam e humilhavam o Príncipe Refém — então seguiu ela de perto.

O príncipe Xiao Lin, muito coincidentemente, estava conversando com alguns nobres próximo da carruagem de Ye Bingchang e quando a viu rapidamente manteve os olhos fixos nela. Li Susu observou a cena como uma expectadora que assiste um drama muito chato, não porque ela tinha algo contra aqueles dois personagens, mas porque vê-los com seus próprios olhos era muito diferente da maneira como ela leu na plataforma.

Afinal, na plataforma online Ye Bingchang era uma mulher linda com uma aura de completa perfeição e mesmo que Xiao Lin fosse o rival de Tantai Jin naquela novel, ele ainda conseguia sustentar alguma afeição do público porque ele era um homem muito gentil — e naquele momento da novel, ele ainda não havia sido declarado como um inimigo do protagonista e os dois não tinham nenhuma verdadeira rixa, exceto a preferência da jovem Ye Bingchang.

Agora, Li Susu não conseguia ver aquela personagem feminina como antes. Não apenas porque ela não conseguia ver o brilho dourado ao redor de Ye Bingchang, como também Xiao Lin era inspirado em seu próprio primo! Por isso, Xiao Lin era tão parecido fisicamente com Gongye Jiwu que parecia quase uma atrocidade vê-lo olhando apaixonadamente para uma mulher! Li Susu foi a primeira pessoa para quem seu primo contou sobre as dúvidas e descobertas acerca de si mesmo e ela foi claramente a maior apoiadora dele, ver uma versão heterossexual dele lhe causava alguns arrepios.

Ao lado dela ela escutou um bufo e um riso de escárnio. Erguendo o olhar, Li Susu viu Tantai Jin observando a mesma cena que ela com um olhar gelado e muito sarcástico e ela podia ler os pensamentos cheios de comentários irônicos, bizarros e zombarias ameaçadoras que passavam pela cabeça de seu demoniozinho.

Exceto que… algo se remexeu e se retorceu no peito de Li Susu em um ciúme desenfreado e sufocante! Isso porque Tantai Jin realmente fazia comentários irônicos sobre Xiao Lin em Black Moonlight, geralmente zombando do príncipe herdeiro, mas isso era porque o demoniozinho sentia ciúmes do príncipe!

Li Susu até lembrava de um trecho específico da novel:

…o Príncipe Herdeiro tinha todas as características físicas de um homem medíocre: sua beleza era mediana, mesmo envolto por todas as roupas de tecidos mais luxuosos disponíveis para alguém de sua posição, ele não se destacava em nada. Se as pessoas da corte não tivessem visto Xiao Lin crescer e não houvesse um eunuco imperial gritando aos ventos para anunciar a chegada dele, ninguém conseguiria distinguir o Príncipe Camélia de qualquer nobre menos interessante. Bem irônico, inclusive, chamá-lo de Camélia, como a flor símbolo da perfeição, por que afinal o que havia de perfeito nele? O que Xiao Lin tinha de tão perfeito para atrair a atenção de todas aquelas jovens? Ye Xiwu, que se orgulhava de ser tão diferente das outras pessoas e era arrogante, Ye Bingchang que era alguém considerada gentil, e todas as outras nobres, seus risinhos bobos ao redor daquele príncipe embrulhavam o estômago de Tantai Jin.

Não havia nada em Xiao Lin que merecesse tal destaque e Tantai Jin riria muito alegremente se fosse possível explanar para todas aquelas jovens nobres que o famoso Príncipe da Perfeição — a Camélia de Sheng — tinha atributos físicos viris bastante minúsculos. Tantai Jin acabou vendo a cena quando tinha dezesseis anos, quando fora preso em uma fonte de banho pelos nobres que tinham esperança de afogá-lo e Xiao Lin chegou para se banhar pouco tempo depois.

Não foi uma cena agradável, mas agora tal conhecimento o fazia rir muito consigo mesmo.’

Foi naquela noite de banquete, ele pensou isso ao ver as personagens femininas correrem para tentar chamar atenção de Xiao Lin. Li Susu respirou fundo, mas havia um amargor em sua boca, Tantai Jin era ciumento e tinha inveja do poder e da vida do príncipe herdeiro — ou melhor dizendo, Tantai Jin odiava o fato de uma pessoa menos interessante e até passível da descrição ‘mediana’ ter tudo que ele queria apenas por ter nascido no momento certo. Ambos eram príncipes, mas apenas Tantai Jin sofria.

Para além disso, Xiao Lin tinha nas mãos a beleza que Tantai Jin queria.

E tudo bem que Pian Ran lhe contou que o casal final original deveria ser Ye Xiwu e Tantai Jin, mas isso não significava que o pequeno demônio não podia acabar tendo sentimentos por Ye Bingchang em algum momento!

Inclusive, se tudo não tivesse dado tudo errado e saído do controle da autora, causando em Pian Ran profundo desgosto com a própria obra, quem garante que no fim Tantai Jin não ficaria com as duas irmãs Ye? Ye Bingchang sempre ocupou o espaço de concubina, a imperatriz seria Ye Xiwu, mas ambas ainda seriam esposas.

Dentro de sua cabeça a voz de Pian Ran ecoou como um murmúrio sarcástico a lembrando: Tantai Jin só se apaixonou por uma mulher em toda vida. Foi o que a autora disse na última conversa que tiveram, ou algo assim, mas o que importava?? Nem ela tinha controle sobre os personagens, quem dirá Li Susu!!!!

Sem querer Li Susu se mordeu de ódio pensando nisso. Seu lábio doeu tanto que ela parou de pensar e o calor e incômodo a alertaram que um inchaço logo começaria.

“Tenha mais cuidado” Tantai Jin comentou ao lado dela, “Se mordendo de ódio desse jeito, que patético.”

Li Susu queria esganá-lo, mas apenas o olhou com raiva antes de entrarem no salão. O incômodo em seu lábio persistia, mas ela tinha que ignorar isso por boa parte da noite mesmo quando a ardência do molho apimentado no peixe a fez fechar os olhos e gemer baixo. Bem, Tantai Jin não estava num todo errado, era realmente patético que ela se ferisse daquela forma por causa de um amontoado de pensamentos irracionais surgidos de repente.

Felizmente ela não era obrigada a manter muitas conversas, exceto cumprimentos, porque Ye Xiwu não era uma personagem muito popular entre as garotas da corte, então quando as moças nobres saíam do salão para conversarem e fofocarem do lado de fora como um bando inteiro de pequenas, risonhas e agitadas gazelas, ela apenas se manteve sentada e bem comportada tentando apreciar a comida, mas sempre que mastigava a ardência voltava. Ah, que ódio!!!

“Venha” Tantai Jin a puxou de repente. Li Susu nem teve muito tempo para entender o que ele quis dizer, visto que ele só murmurou aquela palavra sem especificar mais nada. Os dois caminharam para fora do palácio da maneira mais discreta que puderam.

“Para onde você está me levando, hein?” ela questionou, irritada pela dor quente do inchaço no lábio e pela fome que não havia sido suprimida em um lugar com tanta variedade de comida! Tantai Jin não respondeu, mesmo quando ela tentou se soltar do aperto que a mão dele fazia em seu pulso quando ambos entraram em corredores vazios, frios e escuros.

Se Li Susu não soubesse que Ye Xiwu era considerada útil para o Príncipe Refém, ela certamente acharia que ele tentaria matar a esposa. O semblante dele era gelado e obscuro como um corvo de olhos vermelhos, olhando ao redor enquanto resmungava vez ou outra para que ela ficasse quieta. “Fique aqui.” ele mandou, soltando ela.

“Por que eu te obedeceria, hein?” Li Susu resmungou, vendo-o sumir atrás de uma porta. “Seu…!”

Quem diria que seu personagem favorito podia se mostrar um marido tão irritante! Li Susu bateu o pé no chão e bufou, olhando ao redor com certo nervosismo. Estava tudo muito escuro e exceto pelas luzes de um cômodo a frente, onde as janelas eram cruzadas com madeira de bambu, onde o calor e o cheiro de alho e pimenta eram muito mais fortes do que qualquer outro lugar, não havia mais nada para se olhar.

O vento gelado soprou os galhos das árvores e Li Susu estremeceu mesmo por baixo do manto branco e quente. As folhas da maioria das árvores já haviam caído, mas algumas espécies ainda mantinham mesmo no auge do inverno, suportando também a neve branca e isso trazia sons que no escuro não eram agradáveis. Os corredores estavam completamente vazios e poucas lamparinas haviam sido acesas, mostrando que aquele era um lugar muito remoto do palácio… Porém tampouco parecia ser o Palácio Frio, onde antigamente Tantai Jin costumava morar.

Li Susu quase gritou quando Tantai Jin voltou. Ele parecia um fantasma! Saindo do cômodo tão rápido quanto um vulto e com roupas de tons claros daquele jeito, ela só não soltou o grito entalado em sua garganta porque ele colocou a mão fria sobre a boca dela. “Virei um saco de batatas pra você ficar me arrastando por aí desse jeito?!” ela resmungou, sendo arrastada novamente, dessa vez para um cômodo vazio onde havia apenas uma lanterna de papel em um canto. Tantai Jin não disse nada, se ocupando em acender a lanterna. “O que diabos você está fazendo?”

Suspirando, ela viu o cômodo se encher com uma luz fraca. Tantai Jin olhou para ela como se Li Susu houvesse feito algo muito ruim contra ele, então a puxou e a pressionou contra mesa e arregalando os olhos ela sentiu o incômodo contra sua boca ao ter um tecido muito gelado sendo pressionado contra seu ferimento.

Olhando para baixo, ela viu que era um saco de gelo, era possível notar a umidade que se desprendeu do gelo lentamente molhando o tecido marrom, mas aquilo certamente estava aliviando o calor e o inchaço em seu lábio. Incomodava porque era gelado, mas a dor ardente aos poucos começava a desaparecer. Li Susu sentiu seu coração acelerado e olhou para cima em silêncio, respirando com certa dificuldade ao ver o rosto inexpressivo do príncipe refém tão perto do dela.

Engolindo a seco, ela piscou rápido e tentou pegar o saco de gelo da mão dele, mas Tantai Jin a afastou e se aproximou um pouco mais, pressionando o corpo dela contra a mesa. Li Susu estava ficando nervosa, principalmente quando ele ergueu um pouco os olhos de fênix escuros para olhar para os olhos dela, isso a deixou tímida e com um forte sentimento de opressão, que a fez desviar o olhar para qualquer canto daquele cômodo, como a pilha de cestos de bambu velhos e inutilizáveis no canto ou a teia de aranha no teto.

“Você diz que só quer o cargo de imperatriz, mas causou um ferimento tão feio em si mesma porque viu o príncipe com a tua irmã” Tantai Jin comentou num tom baixo, mas mesmo assim podia-se notar a ironia em sua voz. “Você não tem vergonha?”

“E você, hein? Olhando para o príncipe como se fosse ofender sete gerações ancestrais dele!” ela o rebateu num cochicho, obrigando-o a afastar um pouco o gelo da boca dela. “Você é tão idiota.” ela o xingou baixinho.

“Sim, eu realmente fui idiota em acreditar em você.”

Li Susu olhou para ele indignada. “O que eu fiz??”

“Você gosta dele.” Tantai Jin disse de modo acusatório, “Pare de mentir que tudo é porque quer ser imperatriz, você tem sentimentos por ele.”

E ela tinha mesmo — ela, Li Susu — porque ainda não conseguia desvincular seu primo Gongye Jiwu de Xiao Lin. Ela sentia uma irmandade muito grande com o personagem e ela sabia que precisava parar de sentir aquilo, que Xiao Lin não era o garoto que ela conheceu a vida toda e que manter aquele sentimento poderia atrapalhá-la no futuro quando a guerra estourasse. Afinal, Li Susu ficaria ao lado de Tantai Jin, não importa o que fosse acontecer, mas ela ainda não conseguia, estava tentando, mas era um processo lento!

Frustrada, ela bateu o pé no chão. “E o que isso tem a ver com você?”

“Tem a ver com o fato de que você mente!”

“Eu não menti!” Li Susu insistiu, “Eu não menti pra você!”

Tantai Jin pressionou os próprios lábios com força e voltou a colocar o gelo sobre a boca dela, mas com mais força e menos delicadeza que da primeira vez, como se ao invés de ajudar, ele quisesse puni-la. Li Susu gemeu, inclinando-se para trás e estapeando o pulso do pequeno demônio até que os dois estivessem lutando por um controle estranho que só parou quando a boca dele estava sobre a dela.

O saco de gelo caiu sobre a mesa — ou foi jogado, ela não prestou atenção — e as mãos frias de Tantai Jin se colocaram entre os fios de cabelo dela, bagunçando o penteado que ela e Chun Tao haviam feito com tanto capricho. A mudança abrupta de temperatura, do gelo para os lábios febris do príncipe refém, causou uma leve dor nos lábios machucados de Li Susu, mas ela não tinha problemas com isso, segurando-o pela nuca e ombro.

A língua dele empurrou a dela de maneira um pouco desajeitada, mas ainda como quem exige dominância. Li Susu engasgou, com o coração acelerado e dificuldade para respirar tendo o rosto dele pressionado contra o dela, mas não tinha nenhuma coragem ou intenção de se afastar, principalmente depois que Tantai Jin desceu uma mão para as costas dela e a apertou contra ele com força.

Li Susu perdeu a linha de raciocínio ali, assim como perdeu a força em suas pernas e tendo que dividir o peso ao se apoiar um pouco na mesa, um pouco em Tantai Jin, enquanto o frio ficava completamente do lado de fora daquela porta e o cômodo se enchia com um calor confortável e ela ficava impregnada com o cheiro dele.

Tantai Jin arfou, com a boca vermelha por causa do batom que foi transferido da boca dela para a dele e a pontinha do nariz cor-de-rosa por causa das diversas vezes que seus rostos se esfregaram. Ele engoliu a seco, olhando para a boca dela com um olhar esfomeado e irritado, como se ela devesse algo para ele. Li Susu estava trêmula e fraca, parte da luz prateada da lua adentrava pela janela quebrada coberta por um pedaço de madeira mal encaixado, deixando o rosto dele ainda mais empalidecido e com um suspiro mais trêmulo do que ela, Tantai Jin voltou a pressioná-la, beijando a boca dela com fome e raiva.

“Mentirosa” ele resmungou, ofegante. “Eu odeio você.”

Li Susu franziu a testa. Isso era uma declaração reversa?

Bem, ela não conseguiu pensar muito mais porque voltou a ser beijada.

*

O frio entrou pela janela assim que ele empurrou a fechadura. O inverno havia chegado e era a primeira vez que Tantai Jin tinha roupas quentes e novas para vestir naquela estação, então seus dedos longos e pálidos não estavam doloridos e nem machucados, seus ossos não estavam doendo e seus músculos não estavam tendo espasmos de frio… tudo devido a gracinha de bochechas fofas que certamente ainda estava dormindo naquele quarto enorme e o melhor da residência.

Infelizmente aquele sótão tinha cheiro de poeira e velharias, portanto, mesmo sendo desconfortável sentir aquela brisa gelada que empurrava alguns flocos de neve para dentro, era quase impossível ficar ali dentro sem ser acometido por espirros graças a falta de ventilação. A janela aberta era necessária.

Descendo da elevação, ele puxou o mesmo livro que estava estudando há alguns dias. Não era grande coisa, é claro, porque o General Ye não iria deixar nada muito valioso ou com informações preciosas no alcance das mãos do genro que ele não queria e tampouco confiava.

Tantai Jin sorriu com ironia e frieza.

O General Ye não olhava muito para o rosto do genro, por mais bem comportado e gentil que Tantai Jin se forçasse a parecer na frente de toda aquela família imunda, mas quando o fazia havia desconfiança e desgosto no olhar do velho. Claro, afinal, aquele não era o casamento que ele sempre desejou para a preciosa Ye Xiwu.

Por isso, quanto mais difícil o velho General pudesse tornar o acesso de Tantai Jin à informações, melhor, assim como os corvos negros que haviam sido mortos por vários dias pelos guardas no mês passado — dificultando para o príncipe a comunicação com qualquer pessoa da tribo Yiyue, mesmo que ninguém soubesse que ele podia falar com animais o velho general era um homem inteligente e atento e preferia não dar brechas para qualquer tipo de troca de recados —, e a desculpa estúpida de que os guardas estavam matando os pássaros por causa da sujeira podia funcionar com Ye Xiwu, que era uma garotinha inocente demais para entender, mas não funcionava com Tantai Jin.

O príncipe refém jogou o exemplar do livro sobre a mesa com frieza e zombou disso mentalmente.

O General Ye, mesmo que soubesse que o imperador de Sheng queria acabar com a influência da família Ye e os viesse tentando sabotá-los há anos ainda era fiel. Era um tipo de coisa intrínseca nos generais, a fidelidade ao seu país independente do quão terríveis, corruptos e desgraçados fossem seus imperadores, e Tantai Jin apenas se enfiou naquela família em busca de proteção e conseguiu — mesmo que forçadamente. Como uma cobra se esgueirando em um ninho de passarinhos, se alimentando dos ovos e parasitando os alimentos que a mãe trazia.

Mas daquele ninho Tantai Jin só queria um dos ovos, o mais precioso deles, é claro. Porque Ye Xiwu era a mais amada da ninhada, portanto a que tinha maior valor porque ninguém na família Ye a deixaria sofrer qualquer coisa, então quanto melhor ele fosse tratado por ela, melhor ele seria visto naquela casa. E ainda assim ela era uma dor de cabeça.

Ele esfregou a ponta dos dedos nos lábios e fechou os olhos, suspirando pesadamente. Seu corpo ainda estava fraco e aquecido pelo fantasma dos momentos da noite anterior, as unhas em sua nuca e os gemidos sofridos entre os beijos que os dois trocaram com muita raiva e ódio. Porque os dois se odiavam, sim.

Sem nenhuma dúvida Tantai Jin odiava Ye Xiwu e Ye Xiwu odiava Tantai Jin também. Porém a vontade que ele tinha de agarrá-la pelos quadris e meter tudo dentro dela era mais forte, assim como sabia que ela olhava para ele com indisfarçável vontade de agarrá-lo.

Ele suspirou pesadamente e olhou friamente pela janela. Que estupidez, o que havia de errado com ele?

Do lado de fora, em meio a neve branca e em cima dos telhados do portão uma raposa vermelha balançou o corpo tentando se livrar do incômodo acúmulo de gelo e quando conseguiu seus grandes e astutos olhos castanhos brilharam em direção a ele como se pudessem ler seus pensamentos.

A voz dentro de sua cabeça o atormentou de novo. Estava errado, todos os impulsos desenfreados de ciúmes, desejo e carência por aquela menina estavam errados. Ele não estava ali para brincar de marido e esposa.

Além disso… quanto mais ele se envolvesse com ela, mais difícil seria de se livrar daquele laço depois. Nunca em sua vida ele sentiu culpa de coisa alguma, já que várias vezes as pessoas olharam para ele como se ele fosse lixo e até mesmo chegavam a verbalizar que “ele era pior que um animal”, um pequeno monstrinho, um psicopata e se ele era tão ruim quanto diziam, não havia por que ter consideração com os outros, certo? Mas quando olhava para aquele rostinho delicado e fofo, com olhos grandes e brilhantes, algo dentro de seu peito se contorcia como uma raiz espinhosa e venenosa crescendo através das veias de seu coração e a culpa de estar mentindo o tempo todo o consumia.

Lá embaixo a raposa balançou a cauda peluda e rolou como se estivesse rindo. E certamente ela estava.

Rindo alegremente da desgraça dele e dos conflitos que ele estava enfrentando sozinho. Astuta como era, a raposa podia sentir mesmo de longe o quão tempestuosos eram os pensamentos e sentimentos dentro dele, porque havia uma aura sombria no rosto bonito de Tantai Jin. E ela ria.

Assim como ele riria da desgraça de qualquer outra pessoa, mas era com ele que todas aquelas coisas ruins estavam acontecendo então não tinha graça.

Era tão errado assim querer transar com aquela garota sabendo que ela não tinha a menor preocupação com nada do que se passava na cabeça dele, enquanto ela não fazia ideia de quem ele realmente era? Tantai Jin não devia dar a menor importância para isso! As pessoas serviam para serem usadas e em breve ele estaria longe de Sheng, usurparia e mataria seus irmãos e sua falta de sentimentos ou consideração com as outras pessoas seria muito bem vinda, afinal, ele não pouparia a vida de ninguém que se opusesse a ele.

Principalmente aquele príncipe. Não importava que universo fosse, quem ele fosse, mesmo que ela ainda tratasse o marido com um pouco de dignidade — que dizia ela ser só por causa do veneno do Bicho da Seda, aquela pequena mentirosa — e até dissesse que só queria o posto de imperatriz, ela ainda olharia para aquele Xiao Lin daquela forma carinhosa. Ele estava com muita raiva!

Ele estava com tanta raiva que queria voltar ao quarto de Ye Xiwu e pressionar aquela mulher contra aquele colchão, prendê-la com aquele chicote como ela o prendeu, virá-la com a bunda pra cima e estapear aquela carne macia e fofinha. Tantai Jin mordeu a própria língua até sentir o gosto de sangue.

Era por isso que ele a achava uma dor de cabeça! Ela não se comunicava com ele, mantendo aquele maldito tratamento de silêncio, e despertava nele todos os ímpetos sexuais que Tantai Jin não devia ter.

E se ela fosse só uma casca vazia, sem sentimentos, com aquele olhar frio e tratamento cruel, ao invés de ter dado a ele uma cama confortável e quente, roupas novas e comida adequada, ele também sentiria menos culpa em usá-la — de todas as formas possíveis —, mas não, ela realmente tinha que ser fofa e carregar aquele olhar brilhante.

Irritado com a bagunça da raposa do lado de fora, ele lançou um olhar frio para ela e saiu da janela, fechando a única fresta que havia aberto para a passagem de ar.

Era melhor continuar no escuro do que com a cabeça bagunçada.

Resumir
O artigo descreve um cenário fictício em que Li Susu e Tantai Jin estão em uma carruagem, com Li Susu se arrumando e se preocupando com a falta de confiança de Tantai Jin. Ela se diverte experimentando roupas e joias, mas se sente frustrada com a falta de confiança do personagem. Tantai Jin demonstra indiferença e desinteresse, levando Li Susu a questionar sua sanidade. A interação entre os dois revela a complexidade de seus sentimentos e a falta de comunicação entre eles. No contexto da trama, Li Susu precisa levar Tantai Jin a um banquete no palácio, apesar das restrições impostas por Ye Xiwu. A narrativa destaca a tensão e a incompreensão entre os personagens, bem como a dinâmica de poder e controle presentes na história.